Consenso de Genebra e a dignidade humana

Consenso de Genebra e a dignidade humana



Temos, acima, uma imagem. Uma mulher e um nascituro. Duas vidas, sendo uma já formada, a vida extrauterina, e outra em formação, a vida intrauterina.

Ambas possuem seu valor intrínseco, "um fim em si mesmo", pela filosofia kantiana. Pelo princípio ético moral teológico, a vida é o núcleo da existência espécie humana e, como ditame do direito natural e da lei natura, nenhum ser humano pode abreviar a existência de outro ser humano. Contudo, não podemos considerar que, ao falar em "direito natural e lei natural", a existência de qualquer ser humano pressupõe proteção social e estatal contra violações à existência de qualquer ser humano.

Tanto o direito natural quanto a lei natural foram concebidas como "direito" de escravizar, na Grécia (a.C), por Aristóteles, Cícero e Sêneca, no "Novo Mundo", as Américas, pela teologia de tradição judaico-cristã. Nessa última, no Brasil:

"A história da presença do cristianismo no continente latino-americano, do seu relacionamento com os negros e negras, é marcado por grandes ambiguidades. Milhões de homens e mulheres foram barbaramente escravizados e sumariamente introduzidos no cristianismo e no projeto colonial europeu. Através da catequese e do batismo cristão, foram obrigados a abandonarem a sua cultura e religião ancestral e a “converterem-se” ao cristianismo. Salvo raras exceções, ela foi conivente com a escravidão, utilizando ela própria da mão de obra escrava para a sua sustentação econômica, tendo ela também servido de base ideológica para a justificação religiosa da escravidão." (IGREJA CATÓLICA E A ESCRAVIDÃO NO BRASIL COLÔNIA: uma abordagem cultural. Disponível em: https://snh2013.anpuh.org/resources/pe/anais/encontro5/04-rep-sociais/Artigo%20de%20Sergio%20Douets....)

Temos, então, ambiguidades quanto à concepção do direito natural e da lei natural em relação à dignidade humana, como a tal conhecemos atualmente, fruto, primordial, das barbáries cometidas na Segunda Guerra Mundial. Atualmente, não se faz mais diferenciações entre "dignidade humana" e direitos humanos", já que a Declaração Universal dos Direitos Humanos traz, em seu preâmbulo: "Considerando que o reconhecimento da dignidade inerente a todos os membros da família humana e de seus direitos iguais e inalienáveis é o fundamento da liberdade, da justiça e da paz no mundo". (grifo do autor)

O CORPO DA MULHER

O Código Penal original quanto ao estupro:

Da extinção da punibilidade
Art. 108. Extingue-se a punibilidade:
II - pela anistia, graça ou indulto;
VIII - pelo casamento do agente com a ofendida, nos crimes contra os costumes, definidos nos Capítulos I, II e III do Título VI da Parte Especial;

Podemos pensar em qual filosofia era em embasada o Código Penal original quanto ao perdão do estuprador ao casar com a vítima. A cessação do crime era fundamentada na tese do" crime de honra ", o qual tinha grande importância na sociedade. O fundamento do casamento, entre vítima e estuprador, era a restauração da honra das famílias envolvidas, principalmente da vítima estuprada. Logo, quando o agressor casava com a vítima, o casamento, moralmente, era considerado uma reparação do dano evitando, assim, a desonra da família da vítima e, primordialmente, da própria vítima. A himenolatria era pressuposto da virtude do gênero feminino. Perdê-lo era desonroso, antes do casamento; a perda do hímen era culpa exclusiva da mulher, segundo a cultura patriarcal e machista da época. Não era incomum os magistrados perguntarem se as vítimas mulheres não tentaram, com todas as forças, fechar as pernas.

Nesses exemplos, escassos, mas facilmente encontrados outros exemplos sobre a objetificação da dignidade humana, percebe-se que o gênero feminino, pelo patriarcado, pelo machismo, pelo direito natural e lei natural, como instituidores dos valores teológicos para o casamento e sua reparação social, era "coisa", não ser humano. "Coisa" é objeto que se pode fazer como bem quiser. Ainda que seu valor econômico seja exorbitante, para a maioria na sociedade, o possuidor pode dispor como quiser da" coisa ".

Recentemente houve o desligamento do Brasil do Consenso de Genebra na Nota à Imprensa nº 13, do Ministério das Relações Exteriores.

O Governo brasileiro decidiu atualizar o posicionamento do país em fóruns e mecanismos internacionais que tratam da pauta das mulheres, com o objetivo de melhor promover e defender os mais altos padrões dos direitos humanos e liberdades fundamentais, em linha com a legislação brasileira e os compromissos assumidos pelo país no plano regional e multilateral.
Nesse sentido, o Governo brasileiro decidiu desligar-se da Declaração do Consenso de Genebra sobre Saúde da Mulher e Fortalecimento da Família. O Brasil considera que o referido documento contém entendimento limitativo dos direitos sexuais e reprodutivos e do conceito de família e pode comprometer a plena implementação da legislação nacional sobre a matéria, incluídos os princípios do Sistema Único de Saúde (SUS). O Governo reitera o firme compromisso de promover a garantia efetiva e abrangente da saúde da mulher, em linha com o que dispõem a legislação nacional e as políticas sanitárias em vigor sobre essa temática, bem como o pleno respeito às diferentes configurações familiares. (grifo do autor)

Em 2022, Consenso de Genébra: Brasil transmite à Hungria a liderança do grupo de países que defendem a vida desde a concepção e Governo Federal reforça ações para proteção da vida desde a concepção.

Qual a diferença entre as ideologias no Governo brasileiro antes de 2023 e em 2023? Os direitos humanos, sim, defendem o direito de existência do ser humano. À questão, desde a fecundação (teoria concepcionista) ou a nidação (teoria da nidação)? O imbróglio entre os civilistas. Para a teologia, a vida humana se inicia a partir da fecundação, isto é, o" momento em que o espermatozoide atinge o óvulo e perfura com sucesso a sua membrana externa dando origem a uma célula única" ( Qual a diferença entre fecundação e nidação?).

O aborto, atualmente, na legislação pátria, é possível nos casos: de estupro; de risco de vida para a gestante; até o trigésimo mês de gravidez, sem qualquer motivo; em caso de feto anencéfalo. Percebe-se, então, uma relativização da vida humana, no caso, na vida intrauterina.

Duas vidas, a da gestante e do nascituro. A vida humana, desde a concepção, é protegida pelo Estado brasileiro. Fora das situações descritas no parágrafo anterior, o nascituro tem a sua dignidade protegida, isto é, não ao aborto. A LEI Nº 11.804, DE 5 DE NOVEMBRO DE 2008 é exemplo de proteção, do Estado e da sociedade, ao desenvolvimento saudável do nascituro. Logo, o nascituro não se encontra, totalmente, desprotegido, pelo Estado e sociedade.

No site Centro de Cultura Luiz Freire: Carta da Sociedade Civil Pedindo a Retirada do Brasil da Declaração de Consenso de Genébra.

A vida humana é o pilar de todo ordenamento jurídico, pátrio ou estrangeiro. Apesar de alguns países retrocederem aos tempos sombrios antes da consolidação dos direitos humanos pós Segunda Guerra Mundial, a ideia de valor supremo da existência da vida da espécie humana é muito anterior aos direitos humanos. São os direitos humanos a representação, melhor, compilações filosóficas, teológicas ou não, sobre a dignidade humana. Peguemos, por exemplo, a ciência, sem os direitos humanos. A eugenia negativa, criada por Francis Galton, não foi refutada, na época de sua aplicação, nos EUA, por ser considerada objetiva para questões sociais, existencial da espécie humana. As esterilizações, forçadas, pelo Estado norte-americano, às mulheres negras e hispânicas, ou mulheres com transtornos psíquicos, eram justificadas pela (pseudo) ciência. Apesar das refutações de cientistas contrários a eugenia negativa, desde a sua aplicação, a eugenia vigorou por décadas nos EUA, até os anos de 1970. Não houve nenhum princípio ético moral quanto à dignidade dos esterilizados. Houve, sim, uma redução da dignidade, não pelo valor moral (teológico), muito menos quanto ao valor da vida, em si mesma.

Podemos perceber, a ciência também pode violar à dignidade humana.

Pode-se refutar a eugenia, negativa, pela tradição judaico-cristã? Sim! A vida é a expressão máxima do Criador e, somente Ele, enquanto direito natural e lei natural, pode tirar uma vida humana. Essa implicação, seguramente, inviabilizaria o aborto em quaisquer situações. Todavia, é impensável observar gestante agonizando de dor, por complicações no parto, e permitir que ela morra para salvar o novo ser humano. A ciência, atualmente, tem mais chances de salvar a gestante quando comparada com a ciência da Idade Média. As mulheres grávidas já sabiam que suas vidas corriam risco. Temos a ciência como modificadora de padrões sociais e nas normas jurídicas. Consequentemente, pela tradição judaico-cristã, pelo avanço contínuo da evolução na ciência, a vida da mulher pode ser salva. Mesmo assim, ainda há o dilema, existencial, quanto à vida, isto é, quem deve viver ou morrer na fase puerperal para a expulsão do feto do útero materno? A cesariana pode salvar gestante e feto quando o parto normal é contraindicado.

Analisemos o caso da dignidade por um ângulo teológico. Pela tradição judaico-cristã, de alguns interpretes da lei natural e direito natural, o relacionamento homossexual é violação da vontade de Deus (Levítico 18:22 e Romanos 1:26-27). Como direito natural e lei natural é possível o pai vender sua própria filha como escrava (Êxodos 21:7). Atualmente, esses direito e leis, enquanto "naturais "são impensáveis de serem concretizados, independentemente da existência dos direitos humanos. Há um novo entendimento da espécie humana sobre o valor da dignidade humana, ou melhor, uma nova compreensão sobre o novo direito natural e a nova lei natural. Pensar em trabalho escravo justificado como direito natural e lei natural, pela filosofia aristotélica, no século XXI, impensável. Podem existir pessoas a favor da escravidão, contudo, pela ética moral dos direitos humanos, inviável.

As interpretações sobre direito natural e lei natural são contextos, histórico e cultural, em que foram escritos. A escravidão é" indigna ", pois não há preservação do bem-estar físico, emocional, psíquico e espiritual, nada a ver com religião, tanto de quem é escravizado quanto da própria sociedade. O amor, a compaixão, enfim, valores transcendentes da mera existência orgânica moldaram tanto ética e moralmente o valor da vida humana.

O corpo é da mulher, o nascituro é um novo ser humano, com alguns direitos, não de patrimônio, mas de existência e desenvolvimento sadio (alimentos gravídicos, por exemplo). Impensável uma existência à custa de sofrimento. Ora, como muitos sabem, o Brasil sempre foi um país de extremas desigualdades econômicas. A fome é condição de violação de direitos humanos. O nascituro, quando a gestante passa fome, é violado, e a gestante também sofre pela fome, em sua essência humana. Garantir, por coação social e por coação do Estado, pelo utilitarismo "não aborto", o desenvolvimento embrionário pela agoniante condição de fome é criar uma condição de garantia da vida humana pela crueldade. Assemelha-se aos cuidados de escravocrata de escravos para garantir a sobrevivência miserável dos escravos, ainda que passem fome etc. É a perversão!

Como bem dito o ministro dos direitos humanos, Silvio Almeida, a questão do aborto ou não aborto é muito mais profundo do que se pensa. Abarca questões sociais, econômicas, a dignidade da gestante e do feto e suas condições fisiológicas, o quadro psíquico e emocional da gestante perante sua situação: miséria; fome; violência doméstica; estupro; descaso social, ou preconceito e até ódio, ao transexual homem, que pode ter o aparelho reprodutor e gera um vida em seu útero.

Inexiste única resposta para todos os pormenores sobre a liberdade individual, o valor da vida e qual vida tem mais valor. Existir é um direito natural assim como lei natural, pelos direitos humanos. Existir sem as condições mínimas necessárias para se ter o direito à felicidade, é totalmente refutável pelas ideologias (filosófica, científica, religiosa etc.) presentes no início do século XXI. E se espera que continue vigorar, pelos séculos vindouros, o direito à felicidade existencial.

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